domingo, 31 de julho de 2011

Fugaz Felicidade.

Lá estão Henry e Katherine, sentados de braços dados num tronco em volta da fogueira. Na casa, algumas das luzes ainda estão acesas, e os pais dos dois conversam animadamente na sala. Eles podem ouvir as vozes. Henry contempla Katherine ao seu lado, admira o jeito como a luz da fogueira reluz em seus cabelos e olha em seus olhos com aquele olhar que ela já conhecia. "Aqui não", ela murmura, "Eles podem nos ver pela janela." Os dois se levantam e se dirigem ao campo aberto. A mãe de Katherine percebe esse movimento pela janela, como a moça esperta previra, e lhe chama: "Katherine? Henry? Onde vocês vão?"
"Está tudo bem, mamãe, queremos apenas contemplar as estrelas e a luz da fogueira não permite."
"Antes, a luz da fogueira permite que vejamo-nos, não é?" A vivida senhora pensa, porém replica apenas: "OK, mas não se afastem muito e nem entrem na mata virgem!"

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Dos arbustos, a criatura espreita o grande brilho dentre a escuridão. Odiava o grande brilho. Todos os grandes brilhos têm dentro de si o Brilho que lhe apetece, porém ele não consegue distingui-lo do brilho que queima. A criatura suspira, pensando em quantas vezes queimara sua longa língua quando filhote, atacando indiscriminadamente qualquer grande brilho que visse pela frente. Um movimento junto ao grande brilho lhe atrai a atenção. Dois Brilhos, do tipo mais pulsante, se destacam do grande brilho e se movimentam em sua direção, e ele agradece à floresta pela graça, preparando suas articulações para o bote e começando a seguir os brilhos.



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O jovem casal já se distanciou satisfatoriamente da casa e da fogueira e começa, assim, a aproveitar a companhia um do outro de uma maneira, por assim dizer, mais física, sem que se perca a "compostura", tendo a lua e as estrelas como únicas testemunhas fiéis. Ou talvez não, pois atrás deles a mata virgem espreita com seus múltiplos olhos de vaga-lumes mais um par, vermelho, refletindo a luz que só ele enxerga.

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Aquele tinha de ser o brilho mais forte que ele já vira em sua não tão curta vida. Ou talvez fosse a fome que lhe embotara a visão. A criatura contempla o brilho se avermelhar mais e mais, tornando se um púrpura quase branco.
Enquanto espera que o brilho atinja sua potência mais forte, delicia-se por antecipação com o que acontecerá depois que ele tenha se banqueteado. Provavelmente os dois se separarão, ela com cara de nojo, sem saber como fora parar ali e, especialmente,com ele. Ele, primeiro com espanto depois com divertimento, pois eles nunca saíam no prejuízo. Ela correria para a casa primeiro, primeiro com ódio no rosto e depois chorando de humilhação. Ao verem sua menina correr naquele estado para seu quarto, seus pais teriam uma briga séria com os amigos, pais do rapaz, que buscariam-no no campo, onde ele ainda estaria, certamente, atônito mas satisfeito. O rapaz ficaria de castigo, provavelmente apanharia, enfim, seria repreendido severamente. Os pais da garota tentariam de qualquer jeito, mas não conseguiriam arrancar da filha absolutamente nada sobre o que acontecera para deixá-la assim, supondo então o pior (cujo teor de deturpação variaria dependendo da criação e costumes de cada um), o que só faria aumentar sua raiva do rapaz, que infrutiferamente tentaria argumentar que "só" haviam se beijado. No dia seguinte, pela manhã, bem cedo, a família do rapaz, munida de sua bagagem, se despediria dos antigos amigos, que responderiam o mais secamente possível, e pegariam o primeiro trem rumo á cidade na estação da vila vizinha. Nunca mais nenhum integrante de uma das famílias falaria novamente com qualquer integrante da outra, com raras exceções a eventos de gala onde as duas famílias estivessem  reunidas, ocasiões na qual a pouca conversa que teriam seria de ordem estritamente meteorológica. Traduzindo, comentariam sempre sobre o tempo, sobre a chuva que não dá trégua. O demônio suspirou, imaginando como seria feliz se pudesse se alimentar também do brilho que ele geraria e que faria as famílias se separarem, tão parecido com o Brilho que lhe nutria, porém tão mais abundante no mundo, sem que este brilho lhe desse indigestões homéricas.
A menina nunca mais iria ao campo, porém talvez um dia um jovem rapaz, filho dos vizinhos, lhe trouxesse uma flor e lhe chamasse para um passeio pelas imediações. Talvez o Brilho renascesse em seu peito, e talvez ele (a criatura) ainda estivesse por lá, para roubar-lhe o Brilho novamente. Inclusive, a julgar pela intensidade crescente do Brilho em meio á folhagem, talvez ele (novamente, a criatura) ainda estivesse saciado com aquela única refeição quando aquilo (o renascimento do Brilho na moça) acontecesse. Já o rapaz, este se esqueceria rapidamente do que aconteceria breve no campo, tratando de encontrar uma bela e subserviente moça por quem se enamorar e tratando também de fazer com que esta jamais se encontrasse com Clara, e de encher a cabeça desta com histórias sobre a veracidade das histórias que aquela (Clara) contava, pintando-a (a Clara) como uma mentirosa compulsiva, para o caso dos acontecimentos fugirem de seu controle.
A criatura se apruma e se perde de seus devaneios. O Brilho atingira uma intensidade tão alva que poderia iluminar toda a terra dos pais de Clara, caso não fosse ele o único que o percebesse. O Brilho pulsava tão intensamente que ele poderia temer errar o alvo, se já tivesse errado o alvo alguma vez em sua vida. Não, a criatura extinguira todos os Brilhos que tentara extinguir, ou seja, todos os Brilhos que já existiram, pois ele vivera tanto quanto o Brilho, e viveria enquanto houvessem Brilhos a serem extinguídos. Ele estala seus joelhos e dá seu salto. Suas longas pernas o alçam alto o bastante para que ele estale sua longa língua em direção ao casal, atingindo sem impacto as costas do rapaz. Como imaginara, o Brilho dos dois está unido, é um só, o que facilita em muito sua alimentação. Só o que não calculara era que o brilho é muito maior do que parecia e muitíssimo maior do que ele ou qualquer outro já vira. É o Brilho tão distinto dos outros que já iluminaram seus olhinhos antes que seu corpo não suporta e ele cai por terra. Escuta os dois corpos se precipitarem ao chão, e viu o pouco Brilho que deixara para trás piscar e apagar, no exato instante em que ouve, através do chão, as vibrações de ambos os corações se interromperem. "Curioso", ele pensou, "Talvez eles não sejam tão jovens quanto eu pensei". Pode-se dizer que talvez ele pudesse ter gasto seu último pensamento com qualquer coisa de mais útil, porém o teor de tal conjectura não interessava, uma vez que, logo após a ter concebido, virou poeira e um vento leste, contente por finalmente pegar aquele malfeitor, o varreu para fora da superfície terrestre.

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Rapaz e moça caem, sem saber que mal estranho era aquele que os acometia. Nariz com nariz, deitados no chão e sentindo suas forças se esvaírem abruptamente, o rapaz ainda tem forças para imaginar que aquilo só podia ser culpa dele, que pedira dela um beijo, e dirige-lhe seu olhar de pedir perdão, que ela também reconhece e distingue facilmente, mesmo tendo apenas a luz da lua para tanto. Ela lhe dirige seu olhar terno, que, ele dizia, era capaz de mantê-lo nutrido e saudável por quantos dias fossem, então os dois pares de olhos perdem o brilho e os corações param de bater.

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