sábado, 14 de maio de 2011

O Gatilho

    A campainha tocou. Marcos foi atendê-la, transtornado. Recebeu o homem alto que batia, identificou-o como o hipnotizador com quem falara mais cedo e pediu-lhe que entrasse.
     "Ele está lá em cima. Não falou uma palavra desde o acidente."
     O homem assentiu, sombrio. Marcos o levou para cima. No caminho passaram pela entrada da cozinha, pela qual puderam ver um mulher sentada á mesa, a face enterrada nas mãos, parada como que petrificada. Se essa visão surtiu algum efeito no homem alto, ele não o demonstrou. Subiram as escadas e Marcos introduziu o homem a um quarto. Neste a luz estava apagada e um menininho de dez anos olhava a chuva, os ombros caídos. Um relâmpago passou pela janela e o trovão ribombou pelo quarto, mas o menino nem piscou.
    "Carlos" chamou Marcos "Você tem visita."
    O menininho virou sua cabeça lentamente para a porta. "Quem é?" Ele disse, numa voz que era um fiapo que arranhava por uma garganta tornada áspera, algumas horas atrás, por um pranto desesperado. Seus olhos muito pretos quase não brilhavam.
     "Um amigo" o homem alto disse, arrastando uma cadeira para a frente do menino e puxando um pêndulo do bolso do casaco.





7 anos depois



     Carlos parou o braço, na metade do caminho para devolver um livro a prateleira de sua livraria. Sua amiga Bianca , vendo aquele livro no ar, perguntou-lhe se estava tudo bem. Ele demorou para responder, como se não tivesse registrado a pergunta, os olhos perdidos no vazio. Depois se virou lentamente para ela, com uma expressão intrigada no rosto, e perguntou-lhe se ela sabia o nome da música que tocava nos alto-falantes da livraria.
     "Você não sabe? Chama-se Elephant Gun, da banda Beirut! Essa banda é muito boa, descobri outro dia que eles têm influências de música cigana e ..."
     Carlos assentiu lentamente, aquela mesma expressão intrigada ainda estampada em seu rosto. Não pareceu abstrair nenhuma das informações que Bianca passava, além do nome da música e da banda que a tocava.  Em pouco, também lentamente, virou a cabeça para um falante próximo e perguntou: "E essas vozes?"
     "Que vozes? Não há voz nenhuma, só a do vocalista. Não há nenhum backing vocal nessa música."
     "Mas eu estou ouvindo. Estou ouvindo desde o primeiro dos acordes do violão. Vozes que comentam alguma coisa num tom consternado. E uma criança. Uma criança chorando."
     "Não, não há nada disso na música, Charlie." ela respondeu com um sorriso vacilante.
     "Mas você não está ouvindo também? Espere, está mudando. Agora são vozes lamurientas. Eu... eu acho que conheço uma delas. Uma que chora desesperadamente. E alguém que tenta consolá-la, uma voz forte e razoável. Algumas outras vozes falam baixo..." Carlos falava isso tudo olhando pros lados, como se procurasse um livro qualquer que estivesse aberto e expelisse aqueles sons. Bianca já não sorria. Olhava pra ele preocupada.
     "Calma. A gente tá aqui há tempo demais, talvez seja o calor mexendo com você. Vamos sair um pouco e espairecer."
     Carlos assentiu, para o alívio da amiga. Saíram, braços dados, e puseram-se a caminhar por entre as árvores. Carlos adorava aquela parte da cidade. Adorava vir ali com Bianca e sentir sua bela cabeça encostando em seu ombro enquanto caminhavam. Ver a luz do sol se filtrando por entre as frondosas copas das árvores. Eram tantas árvores. Porém hoje nada lhe tirava da cabeça aquelas vozes. Na verdade vinha escutando aquelas vozes desde que acordara. De manhãzinha pensara que eram a lembrança de algum sonho ruim, porém elas prosseguiram durante todo o dia, durante os momentos em que ele estava em algum lugar silencioso, como nenhuma reminiscência onírica faria, ele sabia. E quando a música começou a tocar na livraria, as vozes aumentaram de volume consideravelmente. Carlos achou então que as vozes eram só o que ele lembrava da música, que poderia ter ouvido em algum momento remoto do seu passado. Mas Bianca lhe falara que não haviam vozes na música, e o mistério prosseguiu. E havia um detalhe que ele não contara a Bianca, primeiro por achar pertubador demais e segundo por não saber se saberia explicar. Enquanto ouvia tanto a música quanto as vozes lamurientas, parecia também ouvir um silêncio angustiante que lhe perturbava mais que todo o resto. Ao contrário do resto das vozes, ele conseguia facilmente identificar esse "som": era o silêncio que ouvia toda vez que seus pais lhe deixavam sozinho em casa, desde seus dez anos até os dias de hoje.
De repente as vozes tornaram-se altas novamente. Saíam do bairro em que estavam e entravam por um beco ladeado por prédios de vidros espelhados. Ao fim do beco, uma das mais movimentadas ruas da cidade. Um rapaz de seus 17 anos atravessava a rua desatento, olhos fechados e cabeça balançando ao ritmo da música que ouvia nos fones de ouvido. O rapaz não tinha o traço definido, como se fosse feito de fumaça ou como se fosse um holograma. Ao ver aquela imagem, o peito de Carlos foi submetido a uma pressão inimaginável. Um golpe de memórias derrubou uma lágrima dos olhos de Carlos enquanto ele sussurava "Cris." E depois, mais alto. "Cris!". A voz que saiu de sua boca não era a sua atual, mas a que ele tinha aos dez anos. Ao ouvir esse grito, Cristian abriu os olhos e olhou para Carlos abrindo um sorriso, como sempre fazia. "Eu não lhe pedi que esperasse na livraria?" De repente um carro etéreo como Cristian bateu nele, deixando uma expressão de surpresa em seus olhos e o sorriso congelado em seu rosto enquanto voava para o lado. Carlos gritou "CRIS!" e começou a correr. No meio do caminho começou a olhar para trás para checar se Bianca o seguia, mas parou o gesto ao ver seu reflexo. Não via sua imagem alta e forte que corria refletida, mas a de uma criança franzina de cabelos desgrenhados. De repente pequenas gotas começaram a cair do céu, mas elas não o molhavam. Ele olhou então para o alto e viu que o céu ensolarado e completamente livre de nuvens havia sido substituído por uma tempestade que se formava. Ele reparou então que já estivera ali. Naquela mesma situação, há sete anos. Se virou para onde seu irmão caíra. A criança que agora ele sabia que havia sido ele se ajoelhava perto da cabeça do rapaz e falava com ele. Chamava-lhe e sacudia-lhe, sem sucesso. Depois começava a chorar. Um grupo de pessoas se juntava, comentando baixinho.
Carlos caiu de joelhos. Sentia como se um pedaço nebuloso de seu passado tivesse finalmente se desanuviado. Ele tivera um irmão. Durante seus primeiros dez anos de vida, ele tivera um irmão que fora seu melhor amigo. Ficava com ele em casa toda vez que seus pais saíam. Brincava com ele como se tivesse a sua idade. Então ele presenciara a morte do irmão, exatamente naquele local. Como podia ter esquecido disso como se fosse um fato trivial, por tantos anos? Então um trovão ribombou e uma nova enxurrada de lembranças se apossou dele. O homem alto. Carlos agarrou os cabelos nas têmporas e se encolheu, um misto de raiva e frustração se apossando dele. Ninguém devia ter mexido com as suas memórias. Ninguém. De repente, uma mão tocou seu ombro. Carlos achou que era Bianca e se sacudiu para se livrar do toque. Não queria descontar sua fúria nela. Mas então uma voz que ele conhecera por dez anos e depois fora forçado a esquecer chamou por ele. Ao levantar os olhos, viu seu irmão agachado na sua frente, olhando para ele e sorrindo. Estava totalmente vestido de branco. Não era o ser etéreo das suas memórias, mas algo nele havia que denotava o fato que ele não pertencia mais a esse mundo. "Você cresceu, Carlos. O bastante para entender como funciona a vida. Não tenha raiva de papai, ele só queria que você crescesse sem maiores traumas, embora tenha exagerado. Viva a vida sabendo que eu aproveitei a minha o máximo possível e aproveite a sua também. E quando bater aquela saudade de mim, ouça minha música favorita."
"Qual?"
"Você sabe." ele disse, apontando para o local onde seu "corpo" ainda jazia e desvanecendo. No ponto onde ele apontava, os paramédicos retiravam um tocador de mp3 velho do bolso do rapaz e o entregavam ao Carlos criança, que o olhava sem sentimento. Afinal, a criança colocou o fone no ouvido e, ao mesmo tempo, o Carlos atual pôde ouvir os últimos acordes de violão em "Elephant Gun". Começou a rir e chorar ao mesmo tempo.
Bianca olhava seu amigo no chão, atarantada.

4 comentários:

Cláudia disse...

MARAVILHOSOOOOO!!!!!!!!

Ana disse...

Termino de ler. Depois

Marcus Matraga disse...

muiiito bom mesmo..vc tem uma boa pegada..vc é um bom leitor..os bons leitores podem ser bons escritores...boto a maior fé..ja ja estara produzindo um romance parabens!!

Eveline disse...

Até chorei! Emocionante! Bjos